Semanas após a Casa da Arquitectura, centro português de documentação, acervo e exposições de arquitetura, ter anunciado o recebimento da coleção completa de projetos de Paulo Mendes da Rocha, conversamos com Nuno Sampaio, diretor executivo da instituição, sobre os trâmites envolvidos na doação, o trabalho da equipe portuguesa em catalogar e disponibilizar o material online, e os próximos passos na salvaguarda deste que é um dos acervos mais valiosos da arquitetura brasileira.
ArchDaily: Pode falar um pouco sobre a Casa da Arquitectura? Que trabalho desenvolvem?
Nuno Sampaio: A Casa da Arquitectura é a única instituição portuguesa, exclusivamente de arquitetura, que junta três linhas de atuação: acolhimento e arquivo de acervos de arquitetura; tratamento arquivístico desses acervos e a sua disponibilização universal; e a promoção do conhecimento e debate públicos através da realização de exposições, publicações, eventos e outras atividades que visam decodificar a arquitetura, tornando-a acessível a todos. Mais do que um centro de arquivo, a Casa da Arquitectura pretende promover a criação de novos conhecimentos através de parcerias com diversas entidades e promover o reconhecimento público da arquitetura.
AD: Quais acervos já possuem?
NS: A Casa da Arquitectura tem os seguintes acervos individuais ao seu cuidado: Eduardo Souto de Moura, Pedro Ramalho, Francisco Melo e Jorge Gigante, Gonçalo Byrne, Carrilho da Graça, e António Fortunato Cabral.
A Casa distingue-se internacionalmente das suas congéneres por criar coleções territoriais com curadoria, onde se distingue já a Coleção de Arquitetura Brasileira. Para além desta, a Casa tem em constituição a Coleção de Arquitetura Portuguesa e a Coleção da Metro do Porto.
AD: Como ocorreu todo o processo de aquisição do acervo do Paulo Mendes da Rocha? Quais são os próximos passos?
NS: Os acervos da Casa da Arquitectura têm sido incorporações através de doações e depósitos. O arquiteto Paulo Mendes da Rocha doou à Casa, em 2015, o projeto do Museu Nacional dos Coches no qual trabalhamos juntos. Mais tarde, em 2018, doou, num gesto de enorme generosidade, um conjunto de sete projetos que integraram a Coleção de Arquitetura Brasileira. Ao longo deste período, sempre foi claro que a Casa da Arquitectura estava disponível para receber a totalidade do seu acervo, tendo dirigido esse convite ao arquiteto Paulo Mendes da Rocha. Em dezembro de 2019, formalizou-se contratualmente o compromisso verbal. Depois o processo seguiu os seus trâmites: montagem das equipes e pré-inventário, submissão às entidades brasileiras competentes e envio para Portugal, onde chegou este mês e foi tornada pública a incorporação.
AD: Em relação à preservação dos originais, quais os procedimentos adotados? Pode falar um pouco sobre a infraestrutura dos acervos da Casa da Arquitetura?
NS: O Arquivo da Casa da Arquitetura é dotado de uma equipa especializada e modernos equipamentos ao nível do mobiliário, controlo ambiental, segurança (incêndio e intrusão) e conservação. Dispõe ainda de espaços específicos para triagem, desinfestação, quarentena, higienização através de um sistema avançado de aspiração central de grande dimensão. Ao todo, o Arquivo ocupa cerca de mil e quinhentos metros quadrados e os seus espaços estão dotados de climatização específica variando de -5oC até 19oC, 24 horas por dia, 365 dias por ano.
O espaço é composto por seis depósitos, para arquivo dos diferentes documentos que compõe um projeto de arquitetura, nomeadamente:
Depósito 1 – destinado ao arquivo de foto reproduções, equipado com estantes compactas, de gavetas horizontais com dimensões superiores a A0 e capacidade para arquivo de cerca de 70 mil A0 e 6 mil rolos.
Depósito 2 – destinado ao arquivo de peças desenhadas originais, equipado com estantes compactas, de gavetas horizontais, com dimensões superiores a A0. Tem capacidade para arquivo de cerca de 90 mil A0 e 8 mil rolos.
Depósito 3 - destinado ao arquivo de processos textuais, equipado com estantes compactas, com prateleiras com capacidade para cerca de 13 mil dossiers.
Depósito 4 – destinado ao arquivo de documentos multimídia em formato analógico e digital, equipado com estantes compactas, de gavetas e prateleiras.
Depósito 5 – destinado às maquetes, é o maior depósito de arquivo e se comunica visualmente com o público através de uma frente envidraçada. É dotado de estantes adaptáveis às várias dimensões das maquetes.
Depósito 6 – Arquivo digital.
Para além dos seis depósitos, o Arquivo possui ainda duas câmaras frigoríficas para preservação de negativos em nitratos de celulose, através do congelamento a seco.
No que diz respeito à preservação de originais, a política do arquivo da Casa da Arquitetura consiste na adoção de procedimentos que visem criar as melhores condições de longevidade e integridade física dos documentos, garantindo, no entanto, a sua acessibilidade através dos meios digitais. O tratamento arquivístico implica sempre o tratamento preventivo, a descrição/inventariação em base de dados digital, a digitalização e o acondicionamento.
O arquivo da Casa da Arquitetura dispõe ainda de um laboratório de conservação e restauro, devidamente equipado, para tratamento de documentos que necessitem de uma intervenção mais direta e profunda.
AD: Vocês pretendem digitalizar todo o acervo do Paulo Mendes da Rocha? Qual a previsão de acesso aos arquivos digitalizados e em qual qualidade podemos esperar por eles?
NS: Sim. A política da Casa é preservar sempre que possível o original, privilegiando o acesso aos documentos pela via digital. O Arquivo possui equipamentos de digitalização que permitem a transferência do suporte dos vários tipos de documentos como negativos, diapositivos, fotografias de várias dimensões, peças desenhadas de pequenos e grandes formatos, livros, textos e maquetes. A digitalização é feita em alta resolução, todavia será disponibilizada em qualidade web. O lançamento da plataforma de acesso online está previsto ainda para este ano.
Relativamente ao tratamento do acervo do Paulo Mendes da Rocha, que se encontra no início, será disponibilizado à medida que for sendo tratado e digitalizado, prevendo-se que esteja integralmente tratado e disponível digitalmente na inauguração da exposição monográfica a ele dedicada, agendada para meados de 2022. Estará disponível a lista dos projetos, podendo os investigadores ajudar a definir as prioridades de digitalização conforme as necessidades.
AD: Após digitalizados, qual a política de acesso aos arquivos? Estarão abertos ao público geral, ou apenas pesquisadores? Haverá alguma restrição em relação ao país de origem do pesquisador?
NS: Todos os acervos estarão acessíveis em qualquer parte do mundo e disponíveis online em qualidade web. As restrições serão apenas as exigidas pela legislação em vigor, pela ética ou resultantes de exigências contratuais dos doadores. Todas as restrições, quando existirem, serão devidamente assinaladas no respetivo acervo.
Haverá uma área reservada para investigadores ou outros utilizadores, que poderão registar-se na plataforma e solicitar imagens em média ou alta resolução mediante o preenchimento de um formulário próprio disponível para o efeito.
Os documentos digitais serão disponibilizados de forma gratuita para efeitos de investigação, até ao limite de 6 imagens por investigador, sendo que o resultado da investigação deve ser dado em cópia à Casa da Arquitectura.
AD: Na semana em que a doação foi anunciada, você publicou uma carta aberta exprimindo a intenção de estabelecer acordos de colaboração institucional com entidades brasileiras. Como serão esses acordos? Com quais instituições?
NS: A Casa da Arquitectura está disponível para fazer acordos com todas as entidades e organismos de investigação e universidades que queiram estudar o acervo do Paulo Mendes da Rocha, enriquecendo-o. A política é facilitar o acesso à informação e a produção de novo conhecimento através do intercâmbio institucional em igualdade de circunstâncias, nomeadamente no que toca a empréstimos de originais para exposições ou outras iniciativas, devendo os materiais ser entregues e devolvidos nas condições regulamentares definidas internacionalmente.
Poderão ainda ser criadas bolsas e linhas de investigação com entidades brasileiras que pretendam apoiar e desenvolver essas investigações. Estamos disponíveis para acolher propostas de trabalho e parcerias de entidades brasileiras apostadas em valorizar o acervo do arquiteto Paulo Mendes da Rocha.
AD: Este trâmite fomentou um intenso debate nas últimas semanas, com algumas opiniões bastante contrárias à ida do acervo à Portugal. Acha que isso acabou criando um atrito entre a Casa da Arquitectura e os profissionais brasileiros?
NS: De todo, bem pelo contrário. Temos recebido muitas manifestações de apoio pelo fato de termos investido espaço e verbas na conservação de um tão importante acervo brasileiro que muito nos orgulha.
A relação da Casa com a arquitetura brasileira não é nova e começou com a Coleção de Arquitetura Brasileira, a primeira que criamos, composta por 107 projetos produzidos nos últimos 90 anos por cerca de 60 arquitetos. Um grupo de 200 brasileiros doaram à Casa cerca de 55 mil elementos. Foi com este enorme patrimônio que montamos a exposição “Infinito Vão – 90 anos de Arquitetura Brasileira”, a maior mostra coletiva sobre a arquitetura brasileira, gerando um livro e mais de 80 atividades dos dois lados do Atlântico que atraíram mais de 50 mil pessoas.
Esta expressão coletiva veio demonstrar internacionalmente a excelência da produção arquitetônica no Brasil. Mas nós estamos também empenhados na promoção do trabalho dos arquitetos no seu território, porque é importante que a sociedade brasileira reconheça essa excelência e muito dos profissionais que ainda hoje estão em atividade.
E a Exposição “Infinito Vão” não termina aqui. Em novembro, o Sesc 24 de Maio vai receber uma variante desta mostra coletiva, com base na parceria com o Sesc-SP, a cujo diretor, Danilo Miranda, dirigimos uma saudação especial.
De 2018 até hoje, a Casa da Arquitectura realizou também mais duas exposições – “Duas Casas de Paulo Mendes da Rocha” e “Irradiações” sobre a obra do arquiteto Fábio Penteado, que foi a primeira mostra internacional a ele dedicada.
AD: Você já anunciou uma exposição da obra do Paulo Mendes da Rocha em 2022. Pode compartilhar mais informações sobre isso?
NS: Estamos já a preparar aquela que vai ser a maior e mais completa exposição sobre o arquiteto Paulo Mendes da Rocha feita a partir do seu acervo e que vai incluir não só obras concluídas, mas também projetos não construídos. A mostra vai ser acompanhada de uma teia de cruzamentos com outras entidades, que se vai expandir pela área metropolitana do Porto, com o objetivo de promover novas leituras sobre o Paulo Mendes da Rocha nas suas múltiplas dimensões públicas, políticas, sociais, filosóficas, abordando as questões e as preocupações que ele tem suscitado ao longo da vida e que são do maior interesse para quem conhece a sua obra e o estuda.
O homem e o arquiteto não andam dissociados. A ambição desta exposição é oferecer às atuais e às novas gerações um testemunho desta personalidade universal. É nossa convicção que, uma vez passado este tempo de pandemia, esta venha a ser uma mostra de referência internacional, que obrigue a uma visita incontornável a Portugal.